"O que é perturbador é o facto de, em meia dúzia de anos, termos destruído tanto do que o que levou mais de meio século a construir. No fundo, no meio de temores, hostilidades, inquietantes nacionalismos e calculismos eleitoralistas, substituímos valores e ideais por contabilidade financeira e eleitoral. Para mais não dá a memória nem a literacia europeia dos que hoje comandam os nossos destinos. Num discurso magnífico de lucidez e actualidade, Jacques Delors recorda os avanços consignados no Tratado de Maastricht: o domínio comunitário (económico, financeiro e social), a política externa e de segurança comum, a segurança interna e claro, o Tratado como suporte da União Económica e Monetária, o mais largo e mais importante dos passos dados tendo em vista a unidade dos europeus. Que fizemos nós desde então? Esquecemos a nobreza e a importância da causa. Em vez de pensarmos estrategicamente a Europa e a saída para a crise global que nos atormenta, reduzimos Maastricht a uma caricatura contabilística: chamamos regra de ouro à redução do deficit estrutural a 0,5% do PIB; criámos mecanismos de vigilância e castigo e colocámo-los à frente de um desígnio estratégico baseado na solidariedade e na persuasão; pusemos sob tutela e obrigámos os mais vulneráveis a uma disciplina financeira férrea sem a qual deixará de haver qualquer tipo de apoio"
"A Europa entre dois tratados", J. M. Brandão de Brito in Jornal de Negócios
Após 20 anos da assinatura do Tratado de Maastricht, abrindo um período de grande optimismo, 20 anos depois, aprova-se um novo "tratado", um pacto orçamental que pretende salvar a UE.
Vinte anos depois, a UE vive períodos de grande instabilidade, de profunda indefinição e de constante alarmismo financeiro.
Pergunto-me se alguns países que constantemente criticam os países da Europa do Sul (aqueles que até se propõem cumprir limites tão excepcionais de défice como os maravilhosos 0.35%), serão tão severos ou tão compreensivos consigo próprios quando os problemas rapidamente os atingirem.
Os países da Europa do Sul como Portugal, Espanha, Grécia e a própria Itália, precisaram (e continuam, em muitos casos) de reformas estruturantes fundamentais. E isso tornou-se inevitável a partir do momento em que países como a Alemanha e a França sentiram o alastrar do contagiante derrapar dos mercados.
Há muito que entendo que um dos problemas - que rapidamente é esquecido - da Europa, são os próprios cidadãos: aqueles que não entendem o que é a Europa, o que é pertencer a uma União Europeia, o que é ser cidadão europeu. Não perceber os problemas que a Europa atravessa, quais as soluções possíveis e as propostas em cima da mesa.
Rapidamente, nas últimas semanas, este cenário se repete.
Condenando ou não a tomada de posição com a assinatura deste Pacto Orçamental, a verdade é que quem não conhece o próprio tratado e as disposições que o completam, necessariamente não perceberá a situação concreta que este pacto criará em cada país. Portugal, a cumprir um rigoroso programa de assistência financeira, englobando medidas específicas no âmbito do défice e da dívida pública, encontra-se, neste momento, excluído dos eventuais "procedimentos de défices excessivos" mencionado no Tratado.
A situação afigura-se de absoluta clareza.
1. É necessário evitar futuras derrapagens de défice e aumento exponencial de dívida pública, à semelhança do que tem ocorrido nos últimos anos.
2. Torna-se preemente salvar a União Europeia da crise financeira e económica em que está mergulhada, salvando o euro, surgindo o pacto orçamental como o tratado a ratificar e a cumprir por todos os Estados-membros como o compromisso sério, única forma de recuperarmos a nossa soberania. A soberania deixa de existir quando somos alvo de intervenção externa nos termos em que estamos a ser.
3. Portugal encontra-se a cumprir um rigoroso e difícil programa de assistência financeira, com grande esforço e sofrimento dos portugueses. Foram traçadas metas rigorosas que são, progressivamente, atingidas. Mas atingi-las leva, obviamente, o seu tempo. Muitos perguntarão como será possível reduzir o défice e a dívida para valores heróicos como os propostos agora no Pacto Orçamental. A arrumação da casa leva o seu tempo, a diminuição da dívida e do défice é progressiva e não (e muito bem) sem o acompanhamento de medidas que estimulam o crescimento económico e o emprego.
Não podemos ser irrealistas a este ponto, asfixiando o país e a possibilidade de voltarmos, novamente, ao mercado.
Por isso, a assinatura deste pacto orçamental significa, todavia, um avanço para a Europa, neste ponto: há uma vontade de seriedade nas contas públicas, há um compromisso que se vê a ser adoptado, há uma vinculação dos países a cumprirem metas muito sérias.
Além disso, o próprio tratado prevê a avaliação contínua pela Comissão Europeia do cumprimento das metas estabelecidas. Prevê circunstâncias excepcionais a ocorrer nos Estados-Membros como "períodos de recessão económica grave tal como constam do Pacto de Estabilidade e Crescimento revisto, desde que o desvio temporário da Parte Contratante em causa não ponha em risco a sustentabilidade das finanças públicas a médio prazo". Afinal é possível. É possível pegar neste tratado e conseguir retirar-lhe uma grande importância.
Resta saber como tudo isto vai ser gerido, como a avaliação será feita, se a regra e esquadro, se com o bom senso que deve imperar quando está em jogo uma União Europeia composta por países tão diferentes do ponto de vista financeiro, do ponto de vista da capacidade de accionar reformas estruturais, da capacidade de obter níveis tão "atléticos" de excelência orçamental e das próprias circunstâncias políticas.